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[Parceiro Pensador continua:] Todavia, tendo lido alguma coisa do que se disse nos últimos dias, penso que, com algumas excepções, tem faltado aos comentários algum daquele rigor que fazia alguém comentar que, se o jurista fosse um móvel, havia de ser um contador, daqueles cheios de gavetinhas ordenadas e estanques. Que as nuances de uma decisão judicial se transformam por vezes no fulcro da questão pode desde logo adivinhar-se no post que no Slashdot anunciou a decisão: «"A few minutes ago, the U.S. Supreme Court has ruled unaniumously against Grokster today. This ruling means that developers of software violate federal copyright law when they provide computer users with the means to share music and movie files downloaded from the Internet. More info about the case here." That's not an entirely accurate statement -- what The Supremes said is that "One who distributes a device with the object of promoting its use to infringe copyright ... is liable for the resulting acts of infringement by third parties using the device, regardless of the device's lawful uses."» Aquela nuance é fundamental, e devia levar os defensores da Free Culture a não pendurarem as chuteiras demasiado cedo. Ninguém nega que "The Supremes" pretenderam com aquela nuance contornar um assunto delicado que, mais cedo ou mais tarde, acabarão por ter de enfrentar sem subterfúgios; como ninguém nega que esse resultado final que há-de vir pode perfeitamente ser desfavorável aos devolopers de programas peer-to-peer. Mas o Direito é feito desses pequenos labirintos onde, por vezes, dois pontos incrivelmente próximos aos olhos do leigo distam milhas para o jurista, e o bom advogado (lato sensu...) de uma causa agarrar-se-á a essa distância com tenacidade. Tratava-se aqui de um problema de responsabilidade "indirecta", na medida em que o que cabia ao Tribunal decidir se os criadores do software em apreço podiam responder pela utilização concreta que os utilizadores dele façam -- o que em última análise, se a resposta àquela decisão tivesse sido afirmativa, sem mais, podia exigir a estes profissionais que activamente prevenissem possíveis utilizações ilícitas dos programas criados. Tivesse a resposta sido por uma afirmativa tout court, e grande parte daquilo por que muitos se movem hoje em dia estaria realmente perdido. E, a aplicar-se semelhante raciocínio, teríamos de ostracizar as fotocopiadoras, os gravadores de K7s, e em suma tudo aquilo que desde logo permita reproduzir num novo documento (lato sensu, mais uma vez) o conteúdo de um documento original. Todavia, nos contornos concretos que lhe deu o Tribunal, não posso deixar de encarar a decisão no sentido que lhe dão no Groklaw: podia ter sido bem pior. A distinção chave está neste excerto do acórdão: «We hold that one who distributes a device with the object of promotion its use to infringe copyright, as shown by clear expression or other affirmative steps taken to foster infringement, is liable for the resulting acts of infringement by third parties.» É difícil não entender isto como uma decisão razoável. Trata-se da velha distinção entre objectivo e resultado. Se a acção dos criadores de software tem a utilização ilícita apenas como seu resultado, estamos num domínio. Nesse domínio, ainda há subdistinções a fazer, e levantam-se outras querelas. Pessoalmente, não acho legítimo exigir como que uma lateralidade do resultado (a utilização ilícita) para afastar a responsabilidade do criador do programa. O mesmo é dizer: penso que não se pode entrar aqui num puro jogo de estatística para aferir de algo tão determinado como uma questão de responsabilidade civil. Não há que pesar, em termos de percentagem, se as possíveis utilizações lícitas do software excedem em percentagem as suas utilizações ilegais. A possibilidade de identificar uma única utilização lícita do produto deverá bastar para afastar a responsabilidade do seu produtor; e tal conclusão procede de uma ideia mais lata, quase ética, que passa pelo agravamento da responsabilidade do utilizador e pelo ilibar volitivo do produtor. A responsabilidade, enquanto «massa de ilicitude» aparece-nos aqui como una e, o que se retira a um agente, sempre sobrará no outro. O utilizador não apenas usou do seu livre arbítrio para se determinar contra a norma quando adquiriu o programa como, mesmo depois da aquisição, podia ainda tê-lo aproveitado para um uso lícito, mas ecolheu não o fazer. Já na esfera do produtor não se pode identificar aquela espécie de conformação com o resultado ilícito - ainda que mediato - da sua actividade que o aproximava quase de um dolo eventual. Nem sequer algo como uma negligência consciente se pode imputar-lhe pois que não há razão para os cidadãos alimentarem desocnfianças entre si; se o criador de programas informáticos desenvolve um software com pelo menos uma utilização lícita, e ainda que conheça as utilizações ilícitas que o mesmo poderá ter, não tem porque confiar na produção desse resultado anti-normativo; não pode presumir o instinto criminoso do seu cliente. Mas essa é uma guerra mais específica, uma guerra na qual os Juízes preferiram manter-se suíços. O problema abordado pelo acórdão foi o da utilização ilícita, não como resultado, mas como objectivo. E aí, no fundo, não nos distanciamos muito da problemática do incitamento ao crime, da cumplicidade, etc. - situações que jã são criminalmente punidas e que podem igualmente estar na base de responsabilidade civil, e portanto na origem de uma obrigação de indemnizar. Efectivamente, o Tribunal, muito embora realçando as possíveis utilizações lícitas da tecnologia peer-to-peer («The advantage of peer-to-peer networks over information networks of other types shows up in their substantial and growing popularity. Because they need no central computer server to mediate the exchange of information or files among users, the high-bandwidth communications capacity for a server may be dispensed with, and the need for costly server storage space is eliminated. Since copies of a file (particularly a popular one) are available on many users' computers, file requests and retrievals may be faster than on other types of networks, and since file exchanges do not travel through a server, communications can take place between any computers that remain connected to the network without risk that a glitch in the server will disable the network in its entirety. Given these benefits in security, cost, and efficiency, peer-to-peer networks are employeed to store and distribute electronic files by universities, government agencies, corporations, and libraries, among others.»), estabeleceu expressamente que o caso se distinguia de outros, que motivaram anteriores acórdãos - como o caso SONY, e que o tribunal recorrido andara mal em aproximar as questões: «Because Sony did not displace other theories of secondary liability, and because we find below that it was error to grant summary judgment to the companies on MGM's inducement claim, we do not revisit Sony further, as MGM requests, to add a more quantified description of the point of balance between protection and commerce when liability rests solely on distribution with knowledge that unlawful use will occur. It is enough to note that the Ninth Circuit's judgment rested on an erroneous understanding of Sony and to leave further consideration of the Sony rule for a day when that may be required.» Não se chega, pois, a entrar na discussão das possíveis utilizações lícitas, nem do problema de estas deverem ou não ser cotejadas, em termos quantitativos, com as ilícitas. O ênfase foi inteligentemente deslocado para a existência de um comportamento activo dos fornecedores dos programas no sentido de promover e incentivar a infracção das normas de propriedade intelectual. É nesse comportamento activo, manifesto no próprio marketing do produto, que reside a ilicitude. Daqui que, em boa verdade, acabemos por estar aqui a discutir não já uma responsabilidade por actos ilícitos de terceiros, mas uma responsabilidade por um acto ilícito próprio, o incitamento a um crime. Nesta linha de raciocínio, parece que em coerência o Supremo deveria defender da condenação do Grokster mesmo que nunca utilizador algum tivesse chegado a usar o programa para violar qualquer norma. As boas novas do acórdão estão no copo meio cheio: interpretado a contrario sensu, a responsabilidade dos criadores de software é afastada sempre que aquele animus favorecer a infracção, forçosamente manifestado em actos expressos, não existir. O Supremo afastou assim o possível resultado absurdo que muitos, com toda a razão, temiam, e que resultaria numa completa desvirtuação do sentido e dos limites da responsabilidade civil - afastou-o, acrescentemos, pelo menos até ao tal dia a que se faz referência no próprio acórdão, em que a questão jurídica subjacente ao caso Sony seja retomada e se discuta a existência de uma responsabilidade baseada apenas na distribuição de um produto com o conhecimento de que a sua utilização ilícita poderá ocorrer. Como se afirma no artigo «La Mula sigue en libertad» (afirma-o um jurista, por dever de ofício mais atento aos interstícios e menos impressionável pelas tendências gerais): «En suma, y pese a lo que se afirmará mañana mismo en gran parte de la prensa -tan dócil en lo relativo a copyright- el p2p sigue siendo perfectamente legal. Y lo seguirá siendo en tanto no se demuestre, dentro de un procedimiento con todas las garantías, que la voluntad del diseñador del programa es favorecer intencionadamente la violación de derechos de autor. Un gran juicio para el que todavía no hay audiencia señalada.» Em observância ao princípio do contraditório ;), fica a opinião de um outro jurista, Lawrence Lessig. Em entrevista ao Business Week, mais do que a decisão concreta contesta a própria sede em que tal decisão é tomada, defendendo que este tipo de regulação devia ser deixada ao Congresso em lugar de passar pelos tribunais. Pessoalmente, tenho sérias dúvidas acerca da bondade desta alternativa, e creio que confiar que uma decisão política resultaria mais adequada do que uma decisão judicial é francamente ingénua, atenta a forma como funcionam os grupos de pressão. Mas também é verdade que eu vivo em Portugal, onde a litigância só agora, e muito devagar, desabrocha como forma «normal» de cada um resolver ou, até com mais frequência, não resolver, os seus diferendos. < Directiva de Patentes de Software Rejeitada | Ataques terroristas em Londres >
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