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Faltam-me dados sobre as propostas supostamente "na gaveta" (o texto pouco ajuda), mas o feeling com que fiquei deste artigo do Expresso é que parece no mínimo haver alguma sanidade e respeito pelo Direito no Ministério da Justiça, apesar de alguma contradição com a assinatura portuguesa na convenção do cibercrime. Se no artigo forem verdadeiras pelo menos as citações do lado do ministério, este e a ministra sobem alguns pontos na minha consideração pela postura descrita, especialmente no contexto da actual histeria colectiva pós-notícias-Casa-Pia (ainda por cima somada à outra pós-11-de-Setembro): à parte algumas chamadas à razão e ao respeito pela legalidade feitas, por exemplo, por algumas das próprias vítimas da Casa Pia e por um punhado de deputados, segue alegremente o festim do julgamento em praça pública e da exploração comercial televisiva em prime time. Embora o texto do Ricardo Lourenço não seja um dos dedicados directamente às "cenas da vida real", alimenta-se do contexto com elas criado nos últimos dias. Na minha opinião consegue simultaneamente, qualquer que fosse a intenção do autor, enxovalhar e desinformar. Como? Sigamos as sugestões dadas pelos títulos presentes no artigo:
O estilo enxovalhante começa logo aqui. Que escandaleira, com que lata é que ela pode ignorar? Como é que ela não vem para a rua e se junta a nós nos linchamentos? Estamos todos, nariz apontado à TV, olhos a rolar pelo jornal, a ver com indignação de pantufas o reality show da agora Segunda Casa Mais Vigiada do País, ansiamos pela oportunidade de (certamente para reforçarmos a nossa indignação) ver mais fotos e filmes pedófilos sem precisar de procurar nos cantos mais negros da Internet (com TVI, SIC e Expresso a tratarem de fazer a entrega ao domicílio), e a Ministra da Justiça IGNORA? Como pode? Está certamente feita com "os outros"! É mais uma cúmplice da "rede pedófila" (rede - Net - Internet)! Como é que alguém que tem a lata de pôr 300 mil crianças "à mercê de redes de crime organizado" pode ser boa pessoa? O medo é realmente uma das melhores ferramentas da propaganda, tão forte que vou ter de acabar por me acobardar como toda a gente que diz alguma coisa fora de moda e ressalvar que até sei que a Internet não é um paraíso de boas intenções só usado para Fazer o Bem (senão levo já o carimbo de ingénuo e a leitura pára aqui). Pois é, vivi uns anos nessa ingenuidade, mas depois os ciberjornalistas do Expresso e de outros Orgãos de Prestígio chegaram à Internet, investigaram a Realidade e ajudaram-me a perceber a Verdade. É pena que, ao passo que das crianças em risco sabemos (?) o número aproximado (300000), do número das recrutadas por redes pedófilas na Internet apenas sabemos a côr: "verdadeiramente, uma cifra negra". Como não conheço o código de cores usado pela Maria José Morgado nem pelo jornalista, fico na dúvida: 5 crianças recrutadas para pedofilia é negro, roxo ou encarnado? E 500? E 5000? E se tivesse sido uma, era um número cor-de-rosa?
O estilo desinformativo do artigo vem logo a seguir. Quem vê o título "Informação perdida" poderá ficar com a ideia de que em Portugal não há nem possibilidade legal de fazer escutas a suspeitos de crime nem sítios decentes para guardar provas, que andam por aí a perder-se. Faltam leis (voilá) para punir o extravio de provas, é isso? Dir-se-ia que o que está em causa aqui é apenas a realização de "escutas informáticas" a pedófilos, e que ninguém está autorizado a fazê-lo. Dir-se-ia, porque o indignado artigo não se digna dizer-nos muito (apesar da "urgência" do anteprojecto de lei) do que é que o bendito anteprojecto dizia, excepto que tinha qualquer coisa a ver com necessidade imperiosa de legalizar a intercepção de comunicações e a preservação da prova digital Mas intercepção de quais comunicações? Comunicações de suspeitos criminosos a ser investigados? Outras? Todas? Preservação de quais provas? Provas de crimes? Provas de que A falou com B pelo canal C no instante T, para todo o (A ,B, T)? O quê afinal? O chamado-jornalista Ricardo Lourenço compreende que existem diferenças? Insinua negligência ministerial em assuntos graves, cita argumentos de inconstitucionalidade do ministério como se fossem desculpas esfarrapadas de mau político, e poupa espaço omitindo dados menos vagos sobre o documento que lhe deu a lenha para pôr a ministra na fogueira? Será porque os leitores do artigo poderiam embarcar menos na pedo-histeria se percebessen claramente que eles, junto com todos os outros utilizadores da Internet em Portugal (e não apenas pedófilos e seus cúmplices), poderiam estar entre os fulanos A e B cujos "dados de tráfego" ficariam guardados? Será, já agora, porque o mesmo valeria para qualquer telefonema? É pena que Ricardo Lourenço poupe espaço na missão de informar para aparentemente o usar na missão de difamar; mas pouco surpreende, com outros exemplos mesmo sem sair do âmbito da Impresa e sem recuar muito no tempo. É pena porque ficamos sem conhecer a salvadora proposta da PJ. Qual é a "informação perdida"? Apenas se pode suspeitar que qualquer semelhança com isto seria mais do que pura coincidência, até tendo em conta o contexto actual. Seria bom sabermos, até pela lusa tradição, da vénia ao que "vem do estrangeiro", se a proposta incluiria algum decalque dos desejos da Europol, como por exemplo guardar para todos os portugueses tudo o que tivesse a ver (sempre com data e hora mas, pelo menos por agora, sem o "conteúdo" da comunicação) com:
Destaquei os telefonemas apenas porque quem pouco conhece ou reflectiu sobre a comunicação na Internet, considerando-a talvez como "cidadã de segunda" no que toca a direitos constitucionais, pode ter pelo menos sensibilidade para o que se irá passar com um meio mais tradicional. A legenda da foto meta-pedófila incluída no artigo reza: Os pedófilos têm na internet um espaço onde podem recrutar e traficar, sem policiamento rigoroso, imagens de abuso sexual de crianças. Será que os pedófilos não têm outros espaços "sem policiamento rigoroso"? Como é? Também vão manter 12 a 24 meses de registos de entradas e saídas de todas as casas particulares, escolas, igrejas, estações de comboio, "etc."? Sem querer minorar a gravidade de recrutamentos e afins, lembro-me de ter sido referido que uma percentagem bastante alta do abuso sexual de crianças vinha de pessoas próximas, frequentemente da própria família. Vão policiar rigorosamente as famílias? Que mais pontos da Constituição vão ser deitados fora? Ou a pedofilia e os que são dela vítimas têm as costas largas para servirem de marketing a outros interesses de controle da Internet?
A propósito de conhecimentos técnicos/respeito pela Internet como meio de conunicação: que Manuel Lopes Rocha, um advogado alegadamente "especialista em direito da informática" (quiçá pouco "especialista" em informática), venda o peixe visto no artigo não me surpreende. Não o digo pela pessoa em si, que não conheço de lado nenhum, mas porque cada um zela pelos seus interesses no seu nicho de mercado, e o mercado jurídico que se vislumbra na retenção de dados deve animá-lo. A Manuel Rocha só faltou dizer que Portugal é refém da sua própria Constituição, esse estorvo que talvez o impeça como "especialista" de mostrar como sabe lidar com "esse tipo" de "ciberdelinquentes intocáveis". Mais de admirar é se Jorge Miranda tiver sido correctamente citado pelo Expresso e se tiver afirmado aquilo estando consciente dos riscos de atropelo às liberdades civis associados à retenção de dados na Europa e de que há algo muito mais vasto em jogo do que casos de pedofilia. Quanto à prevalência "das convenções sobre as leis" e a não "ferir as normas constitucionais", seria interessante ver a opinião detalhada de Jorge Miranda sobre a relação da convenção sobre cibercrime com a nossa Constituição. Quais são os limites da "interpretação com razoabilidade" das normas constitucionais? E, já agora, que dirá ele sobre o prevalecer das convenções (embora num assunto diferente), quando Portugal violar a Convenção de Genebra em coro com a União Europeia quanto ao estatuto dos refugiados? Mas dado o nível do artigo, pode duvidar-se se este recurso do Expresso a citações de Jorge Miranda representa de forma fidedigna qualquer opinião dele neste domínio. Do pouco que vi dele, eu pelo menos tenho alguma dúvida. A minha competência em questões constitucionais poderá ser pouco melhor do que simplesmente saber ler português. Mesmo assim, fico com a impressão de que o jornalista que denuncia a ministra por manter "legislação na gaveta" tem também uma gavetinha lá em casa onde mantém fechada a constituição desde que a comprou em saldo na Feira do Livro. Às vezes parece, por exemplo, que a cotação do artigo 32 da Constituição anda bastante por baixo. Ainda há dias se falou aqui de como as taxas sobre suportes na legislação de copyright sugerem uma presunção de culpa universal, mas essas são "trocos" quando comparadas com outros desrespeitos que vamos vendo pelo parágrafo 2 (mesmo quando nem arguidos há), quanto mais não seja no meio jornalístico. "Por acaso", outro parágrafo particularmente interessante do mesmo artigo diz que... 8. São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Se o Ricardo Lourenço e os outros se alumiam mesmo pela Constituição, será que tudo isto não passa de uma divergência na interpretação de "abusiva intromissão"? * * * Fica a dúvida sobre se:
... ou tudo ao mesmo tempo. Em qualquer dos casos, não merece ser chamado jornalismo. Quando muito, aproveitando o lado "ciber", será "jornalismo virtual" no pior sentido (o de "não real"). Uma imitação barata do produto genuíno que na hipótese mais inofensiva vai servindo para preencher o espaço entre os anúncios. < Symbian OS em terminais móveis | MySQL com falhas >
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