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I. Ampliação do conceito de propriedade intelectual. O conceito original de propriedade intelectual, estabelecendo um equilíbrio mais ou menos razoável entre direitos e recompensas do autor, por um lado, e o "bem" público, por outro, está a ser desvirtuado. Nos últimos anos, aumentaram as pressões sobre os estados para que fosse adoptada legislação aumentando a extensão dos direitos de propriedade intelectual. A duração do copyright é progressivamente aumentada: Com o rato Mickey em "perigo" de ficar livre da Disney, a legislação é alterada. Na Europa, algumas grandes multinacionais, boa parte delas de origem americana, vão fazendo lobbying no sentido de ampliar os seus direitos, medidas que vão sendo defendidas internamente como essenciais para, paradoxalmente, "proteger a cultura europeia". O mesmo para as patentes de software, ou mais em geral "soluções técnicas de problemas técnicos" (ver exemplos), tudo supostamente para "acelerar" a "sociedade da informação" na Europa. Na esfera da propriedade intelectual, caem objectos cada vez mais banais, ou aplicações banais de objectos já antes protegidos: o nome da empresa torna-se algo cada vez mais sagrado, em esferas cada vez menos intrínsecas ao mundo empresarial. Assim o "espaço de nomes" protegido é cada vez mais vasto. Por outro lado, vemos a apropriação de expressões banais, a privatização da própria linguagem: a AOL registou a expressão "You've got mail" e perseguiu outros que a usaram. Esta explosão do que é considerado propriedade intelectual e do nível a que é considerada legítima está naturalmente relacionada com a própria Internet e outras tecnologias recentes. Basicamente, tratou-se de descobrir mais produtos para nos vender, mesmo aquilo que antes era grátis, e tornar o conceito legal. Em vez de pagarmos um livro, lê-lo e emprestá-lo a outros, há planos para pagarmos por cada visualização e não o podermos transferir; o texto "The Right to Read", do Richard Stallman, está já bem longe de ser ficção pura. Afinal, apenas uma expansão do conceito já conhecido de "pay per view". Como disse o nosso leitor João num comentário sob o artigo anterior, "na nova economia as ideias abstractas, os nomes, a identidade têm um valor a que não estamos habituados". Mas esse valor não aparece por acaso ou direito divino (frequentemente resulta de leis passadas sob lobbying da "indústria"), nem é fatal que a sociedade tenha de se habituar a ele. Falta saber até que ponto ele será tolerável: que limites tem o direito a esses bens às vezes "intangíveis" e tantas vezes "instantâneos" (como os nomes no sistema DNS), face ao "bem" da sociedade? É de notar que mais que uma recompensa aos autores (que recebem uma parte muito pequena dos lucros), a "propriedade intelectual" (direitos, patentes, ...) é hoje em dia sobretudo fonte de rendimentos, moeda de troca e instrumento de pressão legal de grandes grupos empresariais. Na prática, o autor isolado fica frequentemente numa situação onde não é fácil defender os seus direitos. Idem para um pequeno detentor de domínio quando "atacado" por uma multinacional, embora tenha havido algumas excepções felizes. A resposta a isto parece ser dada simplesmente pelas possibilidades que a própria Internet fornece, e pelos factos com que os grandes detentores de propriedade intelectual se confrontam agora. Sejam de origem legal, como com o software livre, ou de origem ilegal, como acontece já em grande escala com a circulação de alguma música. Um muito interessante artigo por Eben Moglen, professor de direito e história legal na Columbia Law School, defende que "o software livre, longe de ser um participante marginal no mercado de software comercial, é o primeiro passo vital no declínio do sistema de propriedade intelectual". Esperemos que sim, pelo menos na forma desvirtuada que vemos esse sistema cada vez mais assumir hoje em dia, e de que as tentativas da WIPO para "engolir" o DNS são mais uma amostra. Será que uma base para soluções passaria por deixar de considerar o nome de um domínio estritamente propriedade de quem o usa? II. Acoplamento do DNS a espaços de nomes do "mundo real". O Domain Name System é uma das pequenas grandes maravilhas em que assenta a Internet. Mas como citei acima, "não foi feito para gerir marcas registadas". Num mundo ideal, o sistema com os seus regulamentos originais poderia funcionar bem. Mas a Internet expandiu-se vertiginosamente de encontro ao "mundo real": os poderes político e económico começaram a olhá-la de outra forma. Os correspondentes interesses alargam-se mais e mais para a Internet à medida que esta se expande. A ganância e a vontade de controle (juntas tradicionalmente com uma boa dose de ignorância) vão abrindo feridas por todo o lado. Os tempos do Postel passaram, e a sucessora ICANN tem sido alvo de bastante controvérsia, acusada nomeadamente de ter uma "estrutura bizantina" (ver a ICANNWatch para algumas análises). O acoplamento do DNS ao espaços de nomes externos resulta em boa parte da forma dos endereços que usamos na WWW, os URLs, construídos à base de endereços de DNS. Há quem diga agora que essa escolha foi particularmente infeliz. De facto não tinha de ser assim e existiram ideias alternativas. Se os identificadores das "páginas" não tivessem nada a ver com os nomes do Domain Name System, este podia talvez estar hoje bem mais feliz e sossegado. Só que a coisa foi como foi e agora as empresas adoram ter nomes curtinhos e sugestivos para usar na publicidade. Encaram o nome em DNS como parte da tal "propriedade intelectual", mesmo que seja um nome apenas semelhante ou vagamente relacionado e a ser usado para fins completamente distintos por uma criatura inocente. O mundo comercial entrou pelo DNS dentro como o proverbial elefante na loja de porcelana. III. Escassez. Fora da Internet, há marcas comerciais semelhantes em domínios muito distintos de actividade e em regiões distintas. Com a globalização e a expansão do conceito de propriedade intelectual, mesmo aí se observam já problemas, com algumas marcas paranóicas com tudo o que seja vagamente parecido. Na Internet, a situação exacerba-se. Em primeiro lugar, por causa da acessibilidade global. O serviço WWW de uma empresa "JKL" sediada em Irkutsk ou Massamá acede-se tão facilmente como o de outra "JKL" em Los Angeles. Em segundo lugar, por alguma escassez no espaço de nomes. Parte desta é artificial: consta que o Jon Postel queria criar dezenas de novos domínios de topo a curto prazo, com mais a alguns a a aparecer todos os anos. Mas isso não aconteceu e só agora iremos ter algumas (poucas) estreias. O TLD ".com" ficou tão popular que todos querem usá-lo. E "there can be only one" para cada nome. Todas as entidades que já tinham esse nome fora da WWW o podem querer. Outras empresas, acabadas de criar e especialmente voltadas para a Internet, cobiçam naturalmente certos nomes muito especiais. Se não puderem (ou não ficarem satisfeitas com) possuí-lo sob um TLD regional, irão para a disputa do espaço .com/.net./.org. Mesmo com os TLDs que já existem, a cobiça (ou a paranóia) é tanta que algumas empresas tentam registar-se em tudo, e há serviços criados para esse fim. Alguns "registrars" oferecem registo simultâneo não apenas sob os "3 grandes" mas também em muitos países e desde já o pré-registo sob novos TLDs apenas previstos. IV. Falta de regulamentação. Se a colocação das empresas sob diferentes TLDs não for regulamentada e for permitida indiscriminadamente, a criação de novos TLDs acaba por ser derrotada. De acordo com o relatório do encontro da ICANN em Yokohama, há a intenção de regular mais os novos domínios de topo, mas tudo ficou ainda demasiado vago... (ver também a discussão no Slashdot). Por outro lado, há queixas de falta de representatividade dos utilizadores na ICANN, e as (in)decisões do encontro mais recente parecem não ter ajudado. * * * Claro que há aqueles para quem o problema não existe, nomeadamente os que vivem da especulação ou do litígio associado... Para eles é apenas o "normal funcionamento do mercado". Pessoalmente, acho que até o "mercado" tem de ter limites algures. Para acabar, que isto já vai demasiado longo, recomenda-se uma "estorinha" para os mais "crescidos", a ler num intervalo entre secções de economia: "A Fábula dos Nomes". < PTadmin de cara lavada | Jogos em Linux - O futuro >
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