O Carvalho Rodrigues escreve sobre Deus, António Guterres fala-nos da Internet, e o senhor Meyer decidiu falar de Ética, mais ou menos ao mesmo nível. "Explorar seriamente" as questões éticas associadas ao software livre. Tentando, nada menos, "corrigir" uma "situação". Depois de ler aquilo, fiquei com a impressão de que talvez o senhor Meyer devesse ficar pela escrita de literatura "OO". Será melhor nesse campo? Para nos dedicarmos ao discurso filosófico, não basta coleccionar tentativas de definição... Vejamos qual a mensagem transmitida. Resumo breve: defesa do software livre = gravíssimas faltas de ética e muitos outros defeitos. 1. Sobre a Ética: ou como ensinar alguma coisa sobre o assunto a um bando de ignorantes. Começando pelo caminho a sugerir um limite a partir do qual o que interessa é basicamente economia e a ética é irrevelante. 2. Sobre o software livre: ou o que querem "eles" dizer com isto afinal. "Eles" nem sequer de acordo estão, o que já é mau sinal, mas o autor, como por todo o artigo, lá nos vem ensinar como pode "com o número limitado de termos da língua inglesa". Sempre perspicaz, descobre que não se pode justificar uma ideia com base na qualidade e no número dos seus apoiantes. Nunca teríamos pensado nisso... Aproveita-se para fazer entrar já em cena o comunismo (apoiantes idealistas e voluntariosos) e o nazismo (boas auto-estradas): para os leitores simplórios não se limitarem a visões maniqueistas do tipo Tudo bom versus Tudo Mau e quiçá para os leitores mais sensíveis se começarem a assustar com algumas palavras-chave. 3. Sobre a economia do software livre: as pessoas não vivem sem dinheiro, portanto "free software" no sentido de "software grátis" (afinal, a definição em 2...) é uma designação incorrecta. Ou seja, quem faz destas coisas ou é podre de rico, ou faz a coisa legalmente nos tempos livres ("software doado"!), ou foi tudo pago pelos contribuintes, ou estratégia empresarial, ou, sabe-se lá, feito sem autorização dos chefes com o dinheirinho deles ou dos contribuintes. Logo depois de nos dizer que o dinheiro vem dos contribuintes, ensina-nos que os direitos sobre os produtos desenvolvidos numa universidade pertencem a esta. Ou seja, devemos ser bem comportados e pagar duas vezes às universidades. Nesta altura o leitor deve convenientemente esquecer que o termo "free software" não diz de facto respeito a preços, para não notar a eventual irrelevância de toda esta secção. 4. Sobre as "vozes da revolução": ou como o software livre é uma expressão de Ódio e Irracionalidade (e comunismo, mas "não vamos dizer as coisas assim"). Como fomos preparados para pensar na secção 1, quando toca a dinheiro é criminoso estarmos a meter questões de moralidade na discussão. De passagem somos lembrados que a palavra "free" não é usada no sentido de "gratuito", para logo a seguir, sem tempo para o real significado, sermos novamente distraídos para um suposto abuso da palavra com fins difamatórios pela FSF. A definição dada pela FSF ao uso da palavra não é suficientemente boa para o Grande Definidor Meyer, e portanto somos acusados de extrema falta de ética por suposto abuso não de liberdade mas da palavra "liberdade". Mais razões para nos acusar: as comparações, certamente injustas, entre práticas da Software Publishers Association e práticas soviéticas. Que ingénuos somos, a comparar extremos de capitalismo (que certamente nunca seria capaz de tais coisas) e comunismo. E logo nós, um bando de comunistas... Não passamos de activistas do ódio, e tomem lá um exemplo do Stallman num jantar como mais uma brilhante demonstração do geral a partir do particular (coisa em que o artigo é riquíssimo). 5. Uma perspectiva moral enviesada: ou de como seria melhor que nos tornássemos todos relativistas pós-modernos em vez de estarmos com palas nos olhos e só ver isso da "liberdade". E agora a artilharia pesada: há um tal de Eric Raymond que nas páginas pessoais dele defende a liberdade de porte de armas. Depois de uma explicação de como as armas são más, (is this article about software or hardware?), segue-se uma magistral esgrima lógica: ESR defende o porte livre de armas, ESR é um dos mais "visíveis" (pelo menos na sala de estar do Meyer e nas das outras vítimas inocentes) proponentes do software livre, e o resto do "movimento" não se demarcou da coisa. Como nem o Stallman nem o Torvalds nem quase nenhum de nós se deu ao trabalho de escrever em letras miudinhas no fundo dos nossos ficheiros de código e das nossas páginas pessoais qual a nossa posição perante o porte de armas, fiquem a saber que estamos carimbados como defensores do software livre (oops, "grátis") E TAMBÉM da morte de algumas criancinhas e judeus de vez em quando. O que estará realmente distorcido: a nossa perspectiva moral ou a capacidade de raciocínio lógico do senhor Meyer? 6. A qualidade: ou de como também o software livre é de qualidade variável. Verdade? Uau, nunca teríamos descoberto isso sem a sua ajuda... E que pena, a SUA empresa ter sido afectada por problemas do GCC no Windows... uma espera de meses sem bugs corrigidos... e ninguém para culpar... Pena não terem tido competência interna para os resolver, contribuindo para aquilo que iam usar comercialmente, nem dinheiro para pagar a consultores externos com essa competência. E quando há alguém para culpar? A Microsoft vai indmenizar o estado português pelos problemas de segurança tão na berra ultimamente? Ou mesmo o estado dos EUA? Para temperar a coisa, cita-se Ken Thompson e acrescenta-se umas queixinhas sobre as faltas de promessas nas licenças GNU. De facto, se há coisa que não falta no software comercial são promessas; basta abrir qualquer pasquim da "especialidade". 7. Da santidade: ou de como somos um bando de hipócritas---ooops, hipócritas não, que o professor não quer ser tão intolerante como nós (oops, chamou-nos intolerantes). Mas assim pode usar mais outra palavra chave para juntar ao "comunismo" que usou também sem estritamente nos chamar comunistas. Foi certamente o primeiro a descobrir que há entre nós outras razões para além do altruísmo. Bravo. 8. Das razões: não se distingue muito da anterior. Mas aproveitando para nos etiquetar agora como intolerantes (outra vez, para quem estava distraído) e auto-proclamados "santos". 9. Da Microsoft: ou de como aos nossos outros pecados se junta a inveja. As nossas grandes motivações são: 1. odiar a Microsoft; 2. ficar Por Cima. Corolário meu: afinal a Microsoft é mesmo responsável pela Inovação; que melhor demonstração de Ética? 10. Da ética do reconhecimento: ou de como os autores de software livre são uns ingratos que imitam software comercial e nem prestam reconhecimento aos autores dos trabalhos originais. Sim, os autores de software livre, não a Microsoft e os outros todos que agora "já" inventaram a Internet. Onde o autor aproveita para se esquecer das diferenças entre o sentido de "strictly proprietary context" nos primeiros tempos do Unix e hoje. 11. Os 11 Mandamentos de Meyer, o deus da Ética: onde mais uma vez se "denuncia" o uso software livre como púlpito para ideologias de violência. Acho que para acabar o Bertrand Meyer poderia acatar os seus próprios mandamentos 1 e 3 e respeitar o não-mencionado Knuth com uma grafia correcta do nome do TeX. Que provavelmente o Meyer não tem a felicidade de conhecer, dado evocar TeX/LaTeX apenas como "utilities" servindo "for preparing theses in computer science departments". Não foi por falta de garantias em letras miudinhas que nunca em 11 anos notei qualquer bug ao usar TeX. Nem é por sentir a falta do "prestígio" ou das garantias comerciais do Bertrand Meyer que passarei a usar Eiffel em vez de Python. A demonstração das tendências agressivas do Prof. Knuth ficam como exercício para o Meyer. Seguindo o estilo do autor, quase apetece dizer que as capacidades lógicas dele são abismais, mas não o direi para não descer o nível da discussão sendo tão tortuoso e falacioso como ele :-) |